Exposição de motivos
O direito dos doentes à informação e ao consentimento informado é o objecto desta iniciativa legislativa.
Regulam-se, assim, os direitos dos doentes, no exercício da sua autonomia, em relação ao seu processo clínico e na prestação de cuidados de saúde através do consentimento informado, aplicando-se nas relações jurídicas de direito privado ou de direito público.
As soluções normativas que agora propomos visam a dignidade do doente no que respeita à prática de actos médicos, garantindo um permanente equilíbrio entre a liberdade individual e o desenvolvimento da biologia e da medicina na prática médica e o carácter personalizado da relação médico/doente.
Neste sentido, no projecto prevê-se que a informação prestada pelo médico não seja efectuada de modo standard, tendo em conta o doente médio, mas segundo as necessidades e especificidades de cada doente concreto, individualmente considerado. Clarifica-se, ainda, a forma de transmissão, a titularidade e o regime de prova que fundamenta o consentimento livre e informado do doente. E confere-se, ao encontro de outros ordenamentos jurídicos, uma forma menos morosa e estigmatizante da representação dos adultos com capacidade diminuída. Permite-se, também, a possibilidade, ponderada, de jovens com adequado amadurecimento psicológico prestarem consentimento informado para a prática de actos médicos.
Reconhece-se, na esteira do disposto no artigo 9.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (ratificada pela República Portuguesa a 3 de Janeiro de 2001), a necessidade de uma regulamentação prudencial sobre declarações antecipadas de vontade.
Assim, permite-se que a vontade anteriormente manifestada por um doente seja tomada em consideração como elemento de apuramento da vontade do doente quando este não se encontre em condições de a expressar. Consagra-se, por sua vez, a possibilidade de designação de um procurador de cuidados de saúde.
Assim, permite-se que a vontade anteriormente manifestada por um doente seja tomada em consideração como elemento de apuramento da vontade do doente quando este não se encontre em condições de a expressar. Consagra-se, por sua vez, a possibilidade de designação de um procurador de cuidados de saúde.
Por fim, clarifica-se, o direito e a titularidade do acesso ao conteúdo e à informação existentes no processo clínico.
As soluções legislativas propostas identificam-se com as regras da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, aprovada por Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001, e publicada no Diário da República de 3 de Janeiro de 2001.
O projecto densifica, desenvolve e concretiza alguns dos direitos do doente previstos na Base XIV da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto (Lei de Bases da Saúde), designadamente em matéria de informação, consentimento e de representação dos doentes com capacidade diminuída, regulando, de modo uniforme para o direito privado e para o direito público, o direito de acesso à informação de saúde dos doentes.
A presente iniciativa legislativa contribui, assim, decisivamente para o reforço da tutela do direito à autodeterminação do doente no âmbito de qualquer intervenção médica, no respeito pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Assim, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados, abaixo assinados, do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, apresentam o seguinte projecto de lei:
Capítulo I Generalidades
Artigo 1.º (Âmbito)
A presente lei regula os direitos dos doentes, no exercício da sua autonomia, em relação ao seu processo clínico e na prestação de cuidados de saúde através do consentimento informado, aplicando-se nas relações jurídicas de direito privado ou de direito público.
Capítulo II Autonomia e consentimento informado
Secção I Informação
Artigo 2.º (Conteúdo da informação)
1 — O médico presta a informação segundo as capacidades de entendimento e as necessidades do doente concreto, na medida adequada para que este possa vir a formular uma decisão fundamentada e autónoma.
2 — A informação versa sobre o diagnóstico, o prognóstico, os meios e os objectivos do tratamento, os efeitos secundários, os riscos frequentes e os riscos graves inerentes à intervenção e pertinentes para o doente, os benefícios previstos, as alternativas de tratamento, incluindo os seus riscos frequentes ou graves, benefícios e efeitos secundários, as consequências da recusa do tratamento, bem como, quando aplicável, as repercussões financeiras dos tratamentos propostos, e ainda a eventual participação de estudantes ou de profissionais em formação.
3 — A informação não abrange os riscos muito graves cuja concretização seja manifestamente improvável, salvo se o doente a solicitar.
4 — A informação é tanto mais pormenorizada e extensa quanto menor for o intuito terapêutico da intervenção ou quanto mais graves forem os seus riscos.
5 — O médico assistente é responsável pela prestação da informação ao doente, em coordenação com outros profissionais que realizem procedimentos concretos, no âmbito das suas competências específicas.
6 — O doente tem o direito de saber qual o médico, ou outros profissionais de saúde, que realizam intervenções ou tratamentos, incluindo os meios complementares de diagnóstico.
Artigo 3.º (Forma de transmissão da informação)
1 — A informação é prestada numa entrevista individual, em linguagem acessível e adequada, ou por qualquer outro meio idóneo.
2 — Para além dos casos especialmente previstos na lei, a informação é escrita no caso de intervenções com risco elevado de incapacidade grave ou de morte do doente.
3 — Em qualquer caso, a informação prestada fica registada no processo clínico.
Artigo 4.º (Direito a não saber)
1 — O doente tem o direito a não ser informado.
2 — Se, porém, se verificar um perigo para a saúde de terceiros ou para a saúde pública, o médico informa o doente.
3 — Em qualquer caso, o médico regista esses factos no processo clínico.
Artigo 5.º (Privilégio terapêutico)
1 — O doente não é informado se a informação implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo doente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica.
2 — O médico regista no processo clínico as circunstâncias e os fundamentos da sua decisão de não informar o doente.
Artigo 6.º (Titular do direito à informação)
1 — O doente é o único titular do direito à informação adequada para a prestação do seu consentimento.
2 — Os familiares ou outras pessoas só têm acesso à informação no caso de o doente o consentir, expressa ou tacitamente.
Artigo 7.º (Ónus da prova)
Compete ao profissional ou ao estabelecimento de saúde fazer prova, por qualquer modo, de que prestou a informação nos termos exigidos pela lei.
Secção II Consentimento
Artigo 8.º (Consentimento)
1 — Qualquer intervenção, no âmbito da saúde, carece de um prévio consentimento informado e livre do doente.
2 — O consentimento deve ser prestado após uma reflexão ponderada com base nas informações dadas pelo médico, nos termos da secção precedente.
3 — No caso de intervenções com risco elevado de incapacidade grave ou de morte do doente, o tempo de reflexão não deve ser inferior a 48 horas, salvo em casos de urgência.
Artigo 9.º (Forma do consentimento)
1 — O consentimento é prestado por qualquer meio, salvo nos casos especialmente previstos na lei.
2 — O consentimento é escrito no caso de intervenções com risco elevado de incapacidade grave ou de morte do doente.
Artigo 10.º (Recusa e Revogação do consentimento)
1 — O doente tem o direito de recusar qualquer intervenção médica, ou de revogar o consentimento que tenha dado para ela, a qualquer momento.
2 — Em qualquer destes casos, o médico informa-o dos riscos e das consequências da decisão, e regista os factos no processo clínico.
3 — Em caso algum pode o doente ser discriminado no acesso aos cuidados de saúde pelo facto de ter recusado um tratamento, ou de ter revogado um consentimento prévio.
Artigo 11.º (Urgência e alteração do âmbito da intervenção)
1 — O consentimento é dispensado quando só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde.
2 — Não é ilícita a intervenção médica cujo consentimento tiver sido dado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina como meio para evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde.
3 — Nos casos previstos nos números anteriores, a intervenção sem o consentimento só é lícita se não se verificarem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado.
4 — Em qualquer caso, o médico regista estes factos no processo clínico e dá conhecimento deles ao doente, logo que este esteja em condições de perceber o sentido e alcance das informações.
Secção III Representação de doentes com capacidade diminuída
Artigo 12.º (Representação de adultos com capacidade diminuída)
1 — Considera-se adulto com capacidade diminuída a pessoa que, no momento da decisão, devido a qualquer causa, não tem o discernimento suficiente para entender o sentido do seu consentimento, ou não tem o livre exercício da sua vontade.
2 — Para efeitos da presente lei, o poder de representação será exercido pelo procurador de cuidados de saúde, previamente designado pelo doente nos termos previstos na secção seguinte.
3 — Na falta de procurador de cuidados de saúde, os adultos com capacidade diminuída são representados pelo seu tutor.
4 — Na ausência de qualquer dos representantes mencionados nos números anteriores, o médico actua segundo o consentimento presumido do doente, ouvidos, sempre que possível, o médico de família do doente, e outras pessoas que tenham mantido com o doente relações de grande proximidade, designadamente os familiares.
5 — Nos casos previstos no número anterior, se a intervenção tiver risco elevado de incapacidade grave ou de morte do doente, a decisão do médico deve ser comunicada ao Ministério Público, no prazo de 10 dias, mesmo que a intervenção já tenha sido realizada.
Artigo 13.º (Representação de crianças e jovens)
1 — As crianças e jovens são representadas pelos seus representantes legais.
2 — No âmbito da presente lei, a partir dos doze anos, o jovem deve ser informado, na medida das suas capacidades de entendimento, e a sua opinião deve ser tomada em consideração como um factor cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade.
3 — Sem embargo do que está previsto em legislação especial, o jovem com idade igual ou superior a dezasseis anos, que possua capacidade de entendimento do sentido e alcance da sua decisão, tem o direito de consentir ou de recusar a intervenção médica, desde que esta não implique risco elevado de incapacidade grave ou de morte.
4 — Nos casos previstos na parte final do número anterior, a autorização é prestada pelos representantes legais, salvo o exercício do direito de veto pelo jovem.
Secção IV Declaração antecipada de vontade e nomeação de procurador de cuidados de saúde
Artigo 14.º (Declaração antecipada de vontade)
1 — Através da declaração antecipada de vontade, o declarante adulto e capaz, que se encontre em condições de plena informação e liberdade, pode determinar quais os cuidados de saúde que deseja ou não receber no futuro, no caso de, por qualquer causa, se encontrar incapaz de prestar o consentimento informado de forma autónoma.
2 — A declaração antecipada de vontade é reduzida a escrito.
3 — O declarante pode revogar, a qualquer momento e por qualquer meio, a declaração antecipada de vontade.
4 — A declaração antecipada de vontade é tida em consideração como elemento fundamental para apurar a vontade do doente, salvo o disposto no artigo 15.º.
5 — A eficácia vinculativa da declaração antecipada de vontade depende, designadamente, do grau de conhecimento que o outorgante tinha do seu estado de saúde, da natureza da sua doença e da sua evolução; do grau de participação de um médico na aquisição desta informação; do rigor com que são descritos os métodos terapêuticos que se pretendem recusar ou aceitar; da data da sua redacção; e das demais circunstâncias que permitam avaliar o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade.
6 — A decisão do médico, em conformidade ou em divergência com a declaração, deve ser fundamentada e registada no processo clínico.
Artigo 15.º (Limites da eficácia das declarações antecipadas)
1 — O médico nunca respeita a declaração antecipada quando esta seja contrária à lei ou à ordem pública, quando determine uma intervenção contrária às normas técnicas da profissão, ou quando, devido à sua evidente desactualização em face do progresso dos meios terapêuticos, seja manifestamente presumível que o doente não desejaria manter a declaração.
2 — O médico regista no processo clínico qualquer dos factos previstos nos números anteriores.
Artigo 16.º (Procurador de cuidados de saúde)
1 — O declarante pode designar um procurador de cuidados de saúde a quem atribui poderes representativos para decidir sobre os cuidados de saúde a realizar, no caso de, no futuro, se encontrar incapaz de prestar o consentimento informado com autonomia.
2 — O procurador carece de plena capacidade de exercício de direitos, e aceita a designação no acto constitutivo.
3 — No instrumento de designação do procurador de cuidados de saúde, o outorgante pode fazer declarações antecipadas de vontade, segundo o regime previsto na presente secção.
Artigo 17.º (Forma e Acesso)
1 — O Governo determinará a forma que deve revestir a designação do procurador de cuidados de saúde.
2 — O Governo fica autorizado a determinar um modo de acesso eficaz, pelos serviços de saúde de urgência, à existência e à identidade dos procuradores de cuidados de saúde.
Artigo 18.º (Direito à objecção de consciência)
1 — O disposto na presente secção não prejudica o direito à objecção de consciência dos profissionais de saúde.
2 — Os estabelecimentos em que a existência de objectores de consciência impossibilite o respeito das declarações de vontade antecipadas, ou as decisões legítimas dos procuradores de cuidados de saúde, devem adoptar formas adequadas de cooperação com outros estabelecimentos de saúde no sentido de garantirem o respeito pela vontade manifestada, assumindo os encargos daí resultantes.
Artigo 19.º Não discriminação
Ninguém pode ser discriminado no acesso a cuidados de saúde ou no âmbito de um contrato de seguro em virtude da autoria ou do conteúdo de uma declaração antecipada de vontade.
Capítulo III Autonomia e Processo Clínico
Artigo 20.º (Processo clínico)
1 — O processo clínico contém todo o tipo de informação directa ou indirectamente ligada à saúde, presente ou futura, de uma pessoa viva ou falecida, e à sua história clínica ou familiar.
2 — O profissional de saúde deve registar todos os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, de uma forma clara e pormenorizada.
3 — O doente é o titular da informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, os resultados de análises e de outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos.
4 — Não se consideram informação de saúde as anotações subjectivas feitas pelo profissional para sua orientação particular.
Artigo 21.º (Responsável pelo acesso ao processo clínico)
1 — A unidade prestadora de cuidados de saúde nomeia um responsável pelo acesso à informação constante do processo clínico.
2 — Cabe a este responsável dar parecer sobre os requerimentos formulados, de acordo com as normas constantes deste diploma, e assegurar o seu seguimento dentro dos serviços de cada unidade prestadora de cuidados de saúde.
3 — O responsável pelo acesso ao processo clínico garante o cumprimento das exigências de segurança estabelecidas pela legislação que regula a protecção de dados pessoais e o armazenamento da informação em território sob a jurisdição portuguesa.
Artigo 22.º (Acesso ao processo clínico)
1 — Os titulares da informação de saúde têm direito de acesso à informação constante do processo clínico que lhes diga respeito, sem intermediação de um médico.
2 — Em casos excepcionais, o acesso pelo doente à informação sobre a sua saúde pode ser limitado quando a ser conhecida pelo doente, poria em perigo a sua vida ou seria susceptível de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica, ficando a limitação, e o seu motivo, registados no processo clínico.
3 — A comunicação da informação de saúde é feita por intermédio de um médico, se o requerente o solicitar.
4 — O titular da informação de saúde pode requerer, por escrito, a consulta do processo clínico ou a reprodução, por fotocópia ou qualquer outro meio técnico, designadamente, visual, sonoro ou electrónico, da informação de saúde constante daquele, bem como dos exames complementares de diagnóstico e terapêutica.
5 — O doente não tem o direito de aceder às anotações subjectivas feitas pelo profissional para sua orientação particular, salvo consentimento expresso do profissional.
6 — A resposta ao pedido de acesso deve ser dada no prazo de 10 dias.
Artigo 23.º (Acesso à informação de saúde por terceiros)
1 — Salvo os casos previstos na lei, o acesso à informação constante do processo clínico sem consentimento do seu titular constituição violação de segredo.
2 — O Tribunal pode autorizar o acesso à informação constante do processo clínico, nos termos da lei processual.
Artigo 24.º (Acesso ao processo clínico para investigação)
1 — O acesso ao processo clínico para finalidades de investigação está sujeita a prévio consentimento do titular da informação de saúde.
2 — O acesso ao processo clínico para finalidades de investigação não carece do consentimento previsto no número anterior após anonimização irreversível da informação de saúde.
Palácio de São Bento, 21 de Maio de 2008.
Os Deputados: Alberto Martins — Maria de Belém Roseira — Ana Catarina Mendonça — Helena Terra — António Galamba — Mota Andrade — Ricardo Rodrigues — Manuela Melo — Jorge Strecht — José Vera Jardim.
Sem comentários:
Enviar um comentário