27 fevereiro, 2009

As mentiras de Israel, por Henry Siegman

Henry Siegman é director do Projecto Americano para o Médio Oriente em Nova Iorque, é professor convidado de investigação na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da universidade de Londres. Foi director nacional do Congresso Americano – Judaico e do Conselho de Sinagogas da América.
O artigo que aqui se transcreve, no original Israel’S Lies, foi escrito a 15 de Janeiro de 2009 e publicado no magazine literário London Review of Books, Vol. 31 No. 2 · 29 de Janeiro de 2009.

Foi publicado em português na tradução de João Manuel Pinheiro, com o título”
As mentiras de Israel”pelo site ODiario.info.

Os governos e a maioria dos media ocidentais aceitaram muitas das reivindicações de Israel de justificação do assalto militar a Gaza: que o Hamas, consistentemente, violava o período de seis meses de tréguas que Israel respeitava e que depois se recusava a prolongá-lo; que Israel, por conseguinte, não tinha outro remédio senão destruir a capacidade do Hamas de lançar mísseis para as cidades israelitas; que o Hamas é uma organização terrorista, parte integrante de uma rede de jihad global; e que Israel não só agiu em sua própria defesa mas também em nome de uma luta internacional das democracias ocidentais contra essa rede.



Não tenho conhecimento de um único jornal americano importante, estação de rádio ou canal de televisão que nas suas coberturas do assalto a Gaza questionasse esta versão dos acontecimentos. Críticas às acções de Israel, se as houve (não houve nenhumas da administração Bush) focaram, em vez disso, se a carnificina feita pela Força de Defesa de Israel (IDF) foi proporcional à ameaça a que Israel procurou fazer frente, e se medidas adequadas foram tomadas para evitar vitimas civis.


O processo de paz do Médio Oriente tem sido sufocado em eufemismos enganadores, por isso deixem-me declarar, sem rodeios, que cada uma dessas reivindicações é uma mentira.


Israel, não o Hamas, é que violou as tréguas.
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O Hamas comprometeu-se a parar de disparar foguetes para Israel; como retribuição, Israel iria diminuir o seu apertar de gasganete em Gaza.


Na realidade, apertou-o ainda mais durante o período das tréguas. Isto foi confirmado, não só por todos os observadores neutrais internacionais e Organizações Não Governamentais no terreno, mas também pelo General Shmuel Zakai, um ex-comandante da IDF da Divisão de Gaza. Numa entrevista a Ha’aretz [jornal diário israelita] no dia 22 de Dezembro, acusou o governo de Israel de ter cometido um «erro básico» durante a tahdiyeh, o período de seis meses de tréguas relativas, por falhar a oportunidade da acalmia para melhorar, em vez de piorar acentuadamente, a má situação dos palestinianos da Faixa… Quando se cria uma tahdiyeh, e persiste a pressão económica sobre a Faixa, afirma o general Zakai, «é evidente que o Hamas tentará conseguir um tahdiyeh melhorado, e que a maneira deles para conseguir isso é continuar a disparar Qassams. Não se pode desferir golpes, deixar os palestinianos em Gaza na amargura económica em que se encontram e esperar que o Hamas apenas fique parado sem fazer nada».


As tréguas, iniciadas em Junho do ano passado e que iriam ser renovadas em Dezembro, requeriam que ambas as partes se abstivessem de acções violentas entre eles. O Hamas tinha que parar com os seus assaltos com mísseis e impedir o lançamento de foguetes por outros grupos, tais como a jihad islâmica (mesmo a espionagem israelita reconheceu que isto tinha sido conseguido com surpreendente eficácia), e Israel teria que parar com os seus assassínios selectivos e as suas incursões militares.


Este entendimento foi seriamente violado no dia 4 de Novembro, quando a IDF entrou em Gaza e matou seis membros do Hamas. O Hamas respondeu lançando foguetes Qassam e mísseis Grad.


Mesmo assim, o Hamas ofereceu-se para prolongar a trégua, mas só sob a condição de Israel terminar o bloqueio. Israel recusou. Podia ter cumprido a obrigação de proteger os seus cidadãos concordando em aliviar o bloqueio, mas nem sequer tentou. Não se pode afirmar que Israel iniciou o assalto a Gaza para proteger os seus cidadãos dos ataques por mísseis. Fê-lo para proteger o seu direito de continuar o estrangulamento da população de Gaza.


Parece que toda a gente já se esqueceu que o Hamas declarou o fim dos ataques suicidas com bombas e lançamentos de mísseis quando decidiu aderir ao processo político palestiniano, e que o respeitou por mais de um ano.


Bush deu publicamente as boas-vindas a essa decisão, citando-a como um exemplo do êxito da sua campanha pela democracia no Médio Oriente. (Não apontou mais nenhum outro êxito seu).


Quando, inesperadamente, Hamas venceu as eleições, Israel e os Estados Unidos procuraram imediatamente tirar legitimidade ao resultado e acolheram Mahmoud Abbas, o chefe da Fatah, que até aí tinha sido rejeitado pelos líderes de Israel como uma «galinha depenada». Armaram e treinaram as suas forças de segurança com o fim do derrube do Hamas; e quando o Hamas – brutalmente, sem dúvida, pré–esvaziou esta tentativa violenta de reverter o resultado da primeira democrática eleição honesta no Médio Oriente moderno, Israel e a administração Bush impuseram o bloqueio.


Israel procura contrariar estes indisputáveis factos, insistindo que ao retirar os colonatos de Gaza em 2005, Ariel Sharon deu a oportunidade ao Hamas de iniciar o caminho para a criação de um estado, uma oportunidade que Hamas recusou e, em vez disso, transformou Gaza numa rampa de lançamento para disparar mísseis contra a população civil de Israel.


A acusação é uma dupla mentira.


Apesar de todos os seus defeitos, Hamas trouxe um nível de lei e ordem, desconhecido em anos recentes em Gaza, e fê-lo sem as enormes quantias de dinheiro com que alguns dadores inundaram a Autoridade palestiniana dirigida pela Fatah. Os gangues violentos e os senhores da guerra que aterrorizavam Gaza sob o domínio da Fatah foram eliminados. Muçulmanos não-praticantes, cristãos e outras minorias, tinham mais liberdade religiosa sob Hamas do que teriam tido, por exemplo, na Arábia Saudita, ou sob muitos outros regimes árabes.


A maior mentira é que a retirada de Gaza de Sharon tinha o propósito de ser um prelúdio de outras retiradas e de um acordo de paz. Foi assim que Dov Weisglass, conselheiro principal de Sharon, também chefe negociador com os americanos, descreveu a retirada de Gaza, numa entrevista ao Há’aretz em Agosto de 2004.


«O que eu realmente concordei com os americanos foi que uma parte dos colonatos [isto é, os blocos principais na Margem Ocidental] não seriam tratados de nenhuma maneira, e que os restantes só seriam tratados quando os palestinianos se tornassem finlandeses…O significado [do acordo com os Estados Unidos] representa o congelamento do processo político. E quando se congela esse processo, impede-se o estabelecimento de um Estado palestiniano e impede-se a discussão acerca dos refugiados, das fronteiras e de Jerusalém. De facto, todo este pacote que se chama Estado palestiniano, com tudo que gira à sua volta, foi removido definitivamente da nossa agenda. E tudo isto com a autoridade [do presidente Bush] e a autorização…e a ratificação de ambas as Câmaras do Congresso».


Será que os israelitas e os americanos pensam que os palestinianos não lêem os jornais israelitas, ou que quando viram o que se estava a passar na Margem Ocidental não podiam deduzir o que Sharon tencionava fazer?


O governo de Israel gostaria que o mundo acreditasse que o Hamas lançava os seus mísseis Qassam porque é isto que os terroristas fazem e o Hamas é um grupo terrorista genérico. Na realidade, Hamas não é mais uma «organização terrorista» (o termo preferido por Israel) do que o movimento sionista era durante a sua luta por uma pátria judia.


Nos finais dos anos 30 e 40, os partidos no interior do movimento sionista recorreram a actividades terroristas por razões estratégicas.


De acordo com Benny Morris, foi o Irgun que primeiro alvejou civis. Ele escreve em Righteous Victims, que uma «vaga de terrorismo árabe em 1937, disparou uma onda de bombardeamentos do Irgun contra multidões árabes e autocarros, introduzindo uma dimensão nova ao conflito». Documenta ainda as atrocidades cometidas durante a guerra de 1948-49 pela IDF, admitindo numa entrevista em 2004, publicada no Há’aretz, que as informações emitidas pelo Ministro das Defesa de Israel indicavam que «houve muitos mais actos de massacre por Israel do que teria antecipado… Nos meses de Abril-Maio de 1948, foram dadas ordens operacionais a unidades do Haganah, que estabeleciam explicitamente que elas deviam desenraizar os aldeões, expulsá-los e destruir as próprias aldeias». Em várias aldeias palestinianas e cidades, a IDF levou a cabo execuções organizadas de civis. Quando perguntado pelo Há’aretz se condenava a limpeza étnica, Morris respondeu que não.


Nunca teria existido um Estado Judaico sem o desenraizamento de 700.000 palestinianos. Portanto, foi preciso desenraizá-los. Não havia outra coisa a fazer senão expulsar a população. Foi necessário limpar o interior, as áreas fronteiriças e as estradas principais.


Foi necessário limpar as aldeias donde partiam disparos contra os nossos transportes e os nossos colonatos.


Por outras palavras, quando os judeus matam civis inocentes para desenvolver a sua luta nacional, são heróis. Quando os adversários o fazem, são terroristas.


É muito simples descrever Hamas, meramente como uma «organização terrorista». É um movimento nacionalista religioso que recorre ao terrorismo, como o movimento sionista fez durante a sua luta por uma nação, no entendimento errado de que era a única forma de acabar com uma ocupação opressiva e criar um Estado palestiniano.


Enquanto a ideologia do Hamas determina formalmente que esse Estado será estabelecido sobre as ruínas do Estado de Israel, isso não determina as políticas actuais do Hamas mais do que a mesma declaração na carta da OLP determinava as acções da Fatah.


Não são estas as conclusões de um apologista do Hamas mas sim as opiniões do antigo chefe da Mossad, e conselheiro nacional de segurança de Sharon, Ephraim Halevy.


A liderança do Hamas passou por uma alteração «mesmo sem darmos por isso», escreveu recentemente Halevy, no Yedioth Ahronoth, reconhecendo que a «a meta ideológica do Hamas não é alcançável e que não o será num futuro previsível». O Hamas está preparado e desejoso de ver o estabelecimento de um Estado palestiniano dentro das fronteiras temporárias de 1967. Halevy observou, que enquanto Hamas nada disse sobre quanto tempo essas fronteiras seriam «temporárias», «eles sabem que quando um Estado palestiniano for estabelecido com a sua cooperação, serão obrigados a alterar as regras do jogo: terão que adoptar um caminho que os conduzirá para muito longe dos seus objectivos ideológicos originais». Num artigo anterior, Halevy também observou o absurdo de ligar o Hamas a Al-Qaeda.


Aos olhos da Al-Qaeda, os membros do Hamas são considerados como heréticos, devido às suas declaradas intenções de participar, mesmo que indirectamente, em processos de alguns entendimentos ou acordos com Israel. A declaração [do chefe do gabinete político do Hamas, Khaled Mashal] contradiz diametralmente a abordagem a Al-Qaeda e permite a Israel ter uma oportunidade, talvez histórica, de ter uma melhor influência.


Por que será então que os líderes de Israel estão tão determinados em destruir o Hamas?


Porque sabem que os líderes do Hamas, diferentemente dos da Fatah, não podem ser intimidados a aceitar um acordo de paz que estabelece um «Estado» palestiniano formado por entidades territorialmente desligadas, sobre as quais Israel teria a possibilidade de conservar um controlo permanente. O controlo da Margem Ocidental tem sido o objectivo irreversível das elites militares, de espionagem e políticas, desde o fim da Guerra dos Seis Dias [*]. Acreditam que o Hamas não permitiria tal cantonização do território palestiniano, não importa quanto tempo durasse a ocupação.


Pode ser que estejam enganados acerca de Abbas e do seu bando de reformados mas têm toda a razão acerca do Hamas.


Observadores do Médio Oriente interrogam-se se o assalto de Israel ao Hamas terá êxito na destruição da organização ou na sua expulsão de Gaza. É uma questão irrelevante. Se Israel planeia manter o controlo sobre qualquer futura entidade palestiniana, nunca encontrará um parceiro palestiniano, e mesmo que consiga em desmantelar Hamas, o movimento será posteriormente substituído por uma oposição palestiniana muito mais radical.


Se Barack Obama escolher um enviado experiente para o Médio Oriente que seja fiel à ideia de que entidades estranhas não devam apresentar as suas propostas para um acordo de paz sustentável e justo, e muito menos pressionem as partes a aceitá-lo, mas que em vez disso os deixem trabalhar as suas diferenças, ele dará confiança a uma futura resistência palestiniana, muito mais extrema do que Hamas – uma capaz de se aliar à Al-Qaeda. Para os Estados Unidos, a Europa e para a maioria do resto do mundo, isto seria a pior solução possível. Talvez que alguns israelitas, incluindo os líderes dos colonos, acreditem que isso lhes seria proveitoso, uma vez que daria ao governo um pretexto irresistível para ficar com toda a Palestina. Mas isto seria uma ilusão que provocaria o fim de Israel como Estado judaico e democrático.


Anthony Cordesman, um dos mais fiáveis analistas militares do Médio Oriente, e um amigo de Israel, afirma num relatório escrito para o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais que as vantagens tácticas na continuação da operação em Gaza foram superadas pelo custo estratégico – e que provavelmente não seriam superiores a quaisquer ganhos Israel pudesse ter recebido no princípio da guerra em ataques selectivos a instalações essenciais do Hamas.


E pergunta: «Será que Israel, de certo modo, cometeu uma gafe ao envolver-se numa guerra de escalada progressiva sem um objectivo estratégico claro ou, pelo menos, um que credivelmente pudesse alcançar?»


«Acabará Israel por dar plenos poderes em termos políticos a um inimigo que vencera em termos tácticos? As acções de Israel prejudicarão seriamente a posição dos Estados Unidos na região, de qualquer esperança de paz, assim como o de regimes de países árabes moderados e de outras sensibilidades no processo? Para ser franco, a resposta até agora parece ser sim.» E Cordesman conclui, que «qualquer líder pode assumir uma posição de dureza e alegar que os ganhos tácticos são vitórias sem significado. Se isto for tudo que Olmert, Livni e Barack dão como resposta, é uma desonra para eles e prejudicam o seu país e os seus amigos».

Nota:
[*]
Ver o meu artigo de 16 de Agosto de 2007 no London Review of Books

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