Este foi um artigo dado à estampa no Público de ontem e que vos referi com promessa de posterior transcrição.
Passado o tempo de "nojo" aqui está.
Recordo que este artigo é uma réplica a um outro publicado também no Público, da autoria de Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, intitulado "Testamento vital: enfrentar os profetas da desgraça" já aqui postado.
(O texto foi reformatado tendo em atenção uma melhor leitura em ecrã.)
Testamento vital: instrumento de uma democracia maior
Por Laura Ferreira dos Santos
Os formulários de Directivas Antecipadas devem possibilitar o máximo de opções, e ajudar a pensar em hipóteses.
Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, insurgiu-se neste jornal (22/05/2010) contra um artigo meu (15/05) em que perspectivo a sua recente proposta de formulário de Directivas Antecipadas (DA) como um "passo atrás" nesta questão. Sucintamente, quero esclarecer o que me parece fundamental.
Por ter aprofundado, também em livro (Ajudas-me a morrer?), a questão da morte assistida, cedo me dei conta da importância das DA.
E não mudei nem mudarei de opinião: as DA fazem parte das conquistas de direitos que conduzem ao empowerment dos cidadãos, sobretudo quando doentes.
Mas daí não se segue que tenha de concordar com todas as propostas feitas a este nível - é uma questão de diálogo democrático, não de "forças de bloqueio" ou de "acientificidade". Aliás, mais do que de questões científicas, a questão das DA remete-nos para escolhas biopolíticas que revelam modos diferentes de ver a vida e a morte, aí se incluindo também o modo como encaramos o "governo dos corpos".
Posto isto, explicito críticas que já fiz à proposta de formulário apresentada:
- o lugar do/a procurador/a de cuidados de Saúde é eliminado, quando se sabe que ele/a pode ter um papel hermenêutico fundamental quando as situações previstas numa DA não se aplicam ao que a pessoa está a vivenciar;
- entrega inteiramente aos médicos, e não aos cidadãos, a possibilidade de determinarem o que, para cada pessoa em concreto, é ou não um tratamento "desproporcionado";
- visa acima de tudo condenar a obstinação terapêutica, já condenada no Código Deontológico da Ordem dos Médicos (propósito mantido como "central" no artigo de Rui Nunes publicado no PÚBLICO);
- por comparação com os formulários de DA existentes na Andaluzia, por ex., não posso concordar que este formulário esteja de acordo com "as versões mais modernas existentes" (é só comparar);
- [existe um salto na numeração no original]
- uma DA deveria possibilitar que o cidadão, em situação de incapacidade, recusasse o que já pode rejeitar quando capaz, e não estar dirigido apenas para situações próximas da morte;
- um formulário de DA deve ser o mais pedagógico possível - deixar espaços em branco, sem mais, não supre a necessidade de informação mais concreta de que as pessoas necessitam.
Retomo este último ponto. Se não houver bons modelos de formulários, as pessoas terão dificuldade em "tirar" da sua cabeça o que poderão colocar numa DA.
Por isso, o formulário da Andaluzia me parece tão pedagógico, com perguntas que ajudam a estabelecer critérios sobre o que, para cada pessoa, significa "qualidade de vida", com perguntas específicas sobre os tratamentos que aceitaria ou recusaria em certas situações clínicas bem determinadas, com espaços já bem desenhados para indicar o/a procurador/a e o seu substituto - e para este aceitar as tarefas que assume -, e com partes ligadas à destinação do corpo e outros pormenores ligados ao fim de vida, mas que já não versam sobre tratamentos.
Não digo que o formulário da Andaluzia seja perfeito, mas parece-me uma óptima base de trabalho que pode ser aperfeiçoada.
O meu único irmão morreu em 22/05, aos 57 anos, vítima de enfarte fulminante. Não teve necessidade de uma DA. Mas muitos de nós precisaremos dela para defender a nossa noção de dignidade perante as boas intenções médicas. Para essa altura, quero formulários bem feitos que me possibilitem o máximo de opções e que me ajudem a pensar em hipóteses que eu ainda não vislumbrara. Só assim, penso, se dará neste campo o aprofundamento da democracia que muitos de nós desejamos.
Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN (laura.laura@mail.telepac.pt)
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