19 junho, 2010

O primeiro passo de Saramago


Esta é a capa do primeiro romance de Saramago, na sua primeira edição datada de 1947.

A sua reedição só se faz em Setembro de 1997, cinquenta anos depois, pela Editorial Caminho. Para ela escreveu Saramago este interessante "Aviso", explicando as suas razões, porque só então aceitou reintegra-lo na sua obra.

     Aviso

    O autor é um rapaz de vinte e quatro anos, calado, metido consigo, que ganha a vida como praticante de escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um ano como aprendiz de serralheria mecânica nas oficinas dos ditos hospitais. Tem poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na Biblioteca Municipal das Galveias, tempos atrás, tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar. Ainda estava solteiro quando um caridoso colega da repartição, segundo-oficial, de apelido Figueiredo, lhe emprestou trezentos escudos para comprar os livrinhos da colecção “Cadernos” da Editorial Inquérito. A sua primeira estante foi uma prateleira interior do guarda-louça familiar. Neste ano de 1974 em que estamos nascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente dará o nome de Violante, e publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Viúva mas que vai aparecer à luz do dia com um título a que nunca se há-de acostumar. Como no tempo em que viveu na aldeia já havia plantado umas quantas árvores, pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supõe-se que escreveu este livro porque numa antiga conversa entre amigos, daquelas que têm os adolescentes, falando uns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes, disse que queria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho-de-ferro, e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza física, imaginando que não perderia a coragem entretanto, teria ido para aviador militar. Acabou em manga-de-alpaca do último grau da escala hierárquica e tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias. Não sabe dizer como lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe o menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar. Também não sabe explicar por que foi que escolheu a Parceria António Maria Pereira quando, com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações, se decidiu a procurar um editor para o seu livro. E ficará para sempre como um dos mistérios impenetráveis da sua vida haver-lhe escrito Manuel Rodrigues, da Editorial Minerva, dizendo ter recebido A Viúva na sua casa por intermédio da Livraria Pax, de Braga, e que passasse ele pela Rua Luz Soriano, que era onde estava a editora. Em momento nenhum ousou o autor perguntar a Manuel Rodrigues por que aparecia a tal Pax metida no caso, quando a verdade é que só tinha enviado o livro à António Maria Pereira. Achou que não era prudente pedir explicações à sorte e dispôs-se a ouvir as condições que o editor da Minerva tivesse para lhe propor. Em primeiro lugar, não haveria pagamento de direitos. Em segundo lugar, o título do livro, sem atractivo comercial, deveria ser substituído. Tão pouco habituado estava o nosso autor a andar com tostões de sobra no bolso e tão agradecido a Manuel Rodrigues pela aventura arriscada em que se ia meter, que não discutiu os aspectos materiais de um contrato que nunca veio a passar de simples acordo verbal. Quanto ao rejeitado título, ainda conseguiu murmurar que iria tentar outro, mas o editor adiantou-se, que já o tinha, que não pensasse mais. O romance chamar-se-ia Terra do Pecado. Aturdido pela vitória de ir ser publicado e pela derrota de ver trocado o nome a esse outro filho, o autor baixou a cabeça e foi dali anunciar à família e aos amigos que as portas da literatura portuguesa se tinham aberto para ele. Não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A Viúva.

         J. S.

Actualização: 19 de Julho de 2010, 17:34

Soube agora, pelo Público, que o Governo decretou dois dias de luto nacional. Para mim é igual. Esses sinais de hipocrisia mundana, pretendem servir mais os da "situação" do que a memória de quem partiu e deixa Obra.

No meu caso, Saramago está onde sempre esteve. No meu pensamento. Como um Homem que  admiro, tanto pela Obra como pela sua coragem e persistência na defesa dos seus valores e causas. Um exemplo a ter presente.

Se muitos apenas lhe reconhecem a Obra, eu, sou dos que, para além disso, valorizo a sua solidariedade, dedicação e luta contra a injustiça, a opressão e a miséria, nomeadamente, no tocante à causa da Palestina, face à qual sempre demonstrou  interesse  e generosidade, sendo uma das personalidades mundiais que subscreveu a criação do Tribunal Russell sobre a Palestina.

Estou certo que a sua Fundação zelará pelo seu legado, para que continuemos a fruir da sua sabedoria. Espero que possa reunir o seu espólio, de forma mais profunda e alargada possível e que o coloque acessível a todos através da Internet. (Obviamente não me estou a referir a materiais que sejam sujeitos de direitos de autor e que por isso sejam um justo suporte financeiro para a sua  Família e da sua Fundação.)

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