05 junho, 2010

Mate um turco e descanse, de Uri Avnery

NO ALTO MAR, fora das águas territoriais, o navio foi parado pela Marinha. Os comandos atacaram. Centenas de pessoas no convés resistiram, os soldados usaram a força. Alguns dos passageiros foram mortos, muitos feridos. O navio foi levado para o porto, os passageiros foram desembarcados à força. O mundo vi-os, caminhando sobre o cais, homens e mulheres, jovens e velhos, todos eles extenuados, um após outro, cada um deles caminhando entre dois soldados...

O navio chamava-se "Exodus 1947". Zarpou de França na esperança de quebrar o bloqueio britânico, que foi imposto para impedir que os navios carregados com sobreviventes do Holocausto alcançassem as costas da Palestina. Se tivesse sido autorizado a chegar ao país, os imigrantes ilegais teriam vindo a terra e os britânicos teriam de os enviar para campos de detenção em Chipre, como haviam feito antes. Ninguém teria tomado conhecimento do episódio por mais de dois dias.

Mas o responsável de então era o ministro britânico Ernest Bevin, um líder do Partido Trabalhista, arrogante, rude e amante do poder. Ele não ia deixar um monte de judeus dar-lhe ordens. Decidiu assim ensinar-lhes uma lição que o mundo inteiro iria testemunhar. "É uma provocação", exclamou, e é claro que ele estava certo. O principal objectivo era realmente criar uma provocação, a fim de atrair os olhos do mundo para o bloqueio britânico.

O que se seguiu é bem conhecido: o episódio arrastou-se, uma estupidez levou a outra, o mundo inteiro simpatizava com os passageiros. Mas os britânicos não cederam e pagaram o preço. Um preço muito alto.

Muitos acreditam que o incidente com o "Exodus" foi o ponto de viragem na luta pela criação do Estado de Israel. A Grã-Bretanha entrou em colapso sob o peso da condenação internacional e decidiu desistir de seu mandato sobre a Palestina. Havia, naturalmente, muitas mais razões de peso para esta decisão, mas o "Exodus" provou ser a palha que quebrou as costas do camelo.

EU NÃO SOU o único que se lembrou deste episódio esta semana. Na verdade, era quase impossível não se lembrarem dele, especialmente para aqueles de nós que viviam na Palestina nesse tempo e o presenciaram.

Há, naturalmente, diferenças importantes. Na altura os passageiros eram sobreviventes do Holocausto, desta vez foram pacifistas de todo o mundo. Mas então e agora o mundo viu soldados fortemente armados atacarem brutalmente passageiros desarmados, que resistem com tudo que lhes vem às mãos, varas e as mãos vazias. Então e agora aconteceu em alto mar - a 40 km da costa, então, a 65 km, agora.

Em retrospectiva, o comportamento britânico em todo o processo parece ser incrivelmente estúpido. Mas Bevin não era nenhum tolo, e os oficiais britânicos, que comandaram a acção não eram parvos. Afinal, eles tinham acabado uma Guerra Mundial no lado vencedor.

Se eles se comportaram na mais completa loucura do começo ao fim, foi o resultado da arrogância, insensibilidade e desprezo sem limites para com a opinião pública mundial.

Ehud Barak é o Bevin israelita. Ele não é um tolo, nem o são os nossos altos comandos. Mas eles são responsáveis por uma cadeia de actos de loucura, cujas desastrosas consequências são difíceis de avaliar. O ex-ministro e actual comentador Yossi Sarid chamou ao "comité [ministerial] dos sete", que decide sobre questões de segurança, "os sete idiotas" - e eu devo protestar. É um insulto para os idiotas.

OS PREPARATIVOS para a flotilha duraram mais de um ano. Centenas de mensagens de correio electrónico foram trocadas. Eu mesmo recebi dezenas. Não era nenhum segredo. Tudo estava em aberto.

Houve tempo para todas as nossas instituições políticas e militares se prepararem para a abordagem dos navios. Os políticos consultados. Os soldados treinados. Os diplomatas informados. As pessoas dos serviços de informação para fazerem o seu trabalho.

Nada ajudou. Todas as decisões foram erradas desde o primeiro momento até ao presente momento. E ainda não é o fim.

A ideia de uma flotilha como um meio para romper o bloqueio roça o génio. Colocou o governo de Israel sobre os chifres de um dilema - a escolha entre várias alternativas, todas elas ruins. Todo o general tem esperança de apanhar o seu adversário numa situação destas.

As alternativas eram:

(A) Permitir que a flotilha chegasse a Gaza sem impedimentos. O secretário do gabinete apoiava esta opção. Isso teria levado ao fim do bloqueio porque, após essa flotilha mais e maiores viriam.

(B) Parar os navios em águas territoriais, fiscalizar a sua carga e assegurar que não estavam carregando armas ou "terroristas", em seguida, deixá-los continuar em seu caminho. Isso teria despertado alguns vagos protestos em todo o mundo, mas manteria o princípio de um bloqueio.

(C) Capturá-los em alto mar e trazê-los para Ashdod, arriscando uma batalha frente-a-frente com os activistas a bordo.

Como sempre fizeram, os nossos governos, quando confrontados com a escolha entre várias alternativas ruins, o governo Netanyahu escolheu a pior.

Qualquer um que acompanhou os preparativos nos meios de comunicação poderia ter previsto que eles iriam conduzir a pessoas a serem mortas e feridas. Ninguém ataca um navio turco e espera lindas meninas para os presentear com uma flor. Os turcos não são conhecidos como pessoas que cedem facilmente.

As ordens dadas às forças especiais e tornadas públicas incluíam as três palavras fatídicas: "a qualquer custo". Qualquer militar sabe o que estas três terríveis palavras significam. Além disso, na lista de objectivos, o respeito para com os passageiros só aparecia em terceiro lugar, depois da garantia da segurança dos soldados e do cumprimento da missão.

Se Binyamin Netanyahu, Ehud Barak, o chefe do Estado-Maior e o comandante da marinha não entenderam que isso levaria a matar e a ferir pessoas, então deve ser concluído - até mesmo por aqueles que estavam relutantes em considerar isso até agora - que são manifestamente incompetentes. Deve lhes ser dito, nas palavras imortais de Oliver Cromwell ao Parlamento: "Estiveram sentados tempo demais para qualquer bem que tenham feito ultimamente. Ide e que não se ouça mais falar de vós. Em nome de Deus, ide!”

ESTE EVENTO aponta novamente para um dos aspectos mais graves da situação: vivemos numa bolha, numa espécie de gueto mental, que nos isola e nos impede de ver uma outra realidade, a que é percebida pelo resto do mundo. Um psiquiatra poderia considerar que este é o sintoma de um problema mental grave.

A propaganda do governo e do exército conta uma história simples: os nossos heróicos soldados, determinados e sensíveis, a elite da elite, desceram ao navio a fim de "conversar" e foram atacados por uma multidão selvagem e violenta. Porta-vozes oficiais repetem inúmeras vezes a palavra "linchamento".

No primeiro dia, quase todos os meios de comunicação israelitas aceitaram isto. Afinal, é evidente que nós, os judeus, somos as vítimas. Sempre. Isto aplica-se aos soldados judeus, também. Na verdade, nós assaltámos um navio estrangeiro no mar, mas tornando-nos de imediato em vítimas que não têm escolha senão a de se defender contra a violência e incitamentos anti-semitas.

É impossível não recordar a clássica piada judaica sobre a mãe judia na Rússia ao se despedir do seu filho, que foi convocado para servir o Czar na guerra contra a Turquia. "Não te esforces demasiado", implora ela, "Mata um turco, e descansa. Mata outro turco, e descansa de novo... "

"Mas mãe" interrompe o filho: "E se o turco me matar?"

"A ti?", exclama a mãe, "Mas porquê? O quê que lhe fizeste? "

Para qualquer pessoa normal, isso pode parecer loucura. Soldados fortemente armados de uma unidade de elite de comandos aborda um navio em alto mar no meio da noite, pelo mar e pelo ar - e eles são as vítimas?

Mas há um grão de verdade nisto: eles são as vítimas de comandantes arrogantes e incompetentes, de políticos irresponsáveis e dos meios de comunicação alimentados por eles. E, na verdade, da opinião pública israelita, uma vez que a maioria das pessoas votou neste governo ou na oposição, o que não é diferente.

O caso "Exodus" foi repetido, mas com uma mudança de papéis. Agora somos os britânicos.

Nalgum lugar, um novo Leon Uris está planeando escrever o seu próximo livro, "Exodus 2010". Um novo Otto Preminger está planeando um filme que vai se tornar um blockbuster. Um novo Paul Newman irá nele brilhar - afinal, não há falta de talentosos atores turcos.

HÁ MAIS de 200 anos, Thomas Jefferson afirmou que cada nação deve agir com um "respeito apropriado às opiniões da humanidade". Os líderes israelitas nunca aceitaram a sabedoria desta máxima. Elas aderem à máxima de David Ben-Gurion: "Não é importante o que dizem os gentios, o que é importante é o que os judeus fazem." Talvez ele tenha assumido que os judeus não agiriam estupidamente.

Fazer inimigos dos turcos é mais do que uma tolice. Durante décadas, a Turquia tem sido o nosso principal aliado na região, um aliado muito mais próximo do que é geralmente conhecido. A Turquia poderia desempenhar, no futuro, um papel importante como mediador entre Israel e o mundo árabe-muçulmano, entre Israel e a Síria, e, sim, mesmo entre Israel e o Irão. Talvez tenhamos agora conseguido unir o povo turco contra nós - e alguns dizem que esta é a única questão em que os turcos estão agora unidos.

Este é o Capítulo 2 da operação “Cast Lead”. Então, irritámos a maioria dos países do mundo contra nós, chocando os nossos poucos amigos e alegrando os nossos inimigos. Agora fizemo-lo de novo, e talvez com um sucesso ainda maior. A opinião pública mundial está a voltar-se contra nós.

Este é um processo lento. Assemelha-se ao acumular de água atrás de uma represa. A água sobe devagar, calmamente, e a mudança é dificilmente perceptível. Mas quando se atinge um nível crítico, a barragem rompe e o desastre está sobre nós. Estamos perseverantemente a aproximarmo-nos desse ponto.

"Mate um turco, e descanse", diz a mãe na piada. O nosso governo não descansa sequer. Parece que eles não vão parar até fazerem inimigos os últimos dos nossos amigos.

Actualizado em 2010.06.06 - 08:

A propósito da aplicabilidade do "descanso" veja no Público  de hoje, uma nova abordagem.

1 comentário:

Antonio disse...

Caro Pedro: Muito bom o texto. è o que sempre digo, todo Povo tem em seu meio todo tipo de pessoas. Há que se conviver com isso e não cairmos em generalizações injustas.
Forte abraço.