14 junho, 2010

Laura Ferreira dos Santos: Um passo atrás no "testamento vital"; Rui Nunes: Testamento vital: enfrentar os profetas da desgraça

Ontem tive a ocasião de chamar a vossa atenção para um artigo de Laura Ferreira dos Santos, intitulado "Testamento vital: instrumento de uma democracia maior", publicado no jornal "Público".

Tratava-se de uma resposta aos comentários que a Associação Portuguesa de Bioética (APB) lhe tinha endereçado pela mesma via sobre um seu artigo "Um passo atrás no "testamento vital".

Esse artigo que agora iremos publicar era referido à entrega pela APB, na Assembleia da República, a 5 de Maio p.p., de uma proposta de minuta do "Documento de Directivas Antecipadas de Vontade (DAV).

Entendemos pela relevância do assunto publicar esse artigo e de seguida os comentários da APB, através do seu presidente Rui Nunes, com a devida referência ao Público. (O texto foi reformatado tendo em atenção uma melhor leitura em ecrã.)

Um passo atrás no "testamento vital"
Por Laura Ferreira dos Santos

A última proposta da Associação Portuguesa de Bioética esvazia o "testamento vital" de qualquer conteúdo pertinente.

A 5 de Maio, Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética (APB), apresentou uma proposta de Documento de Directivas Antecipadas de Vontade (DAV). Que dizer?

Primeiro, penso ser de lamentar que, logo de início, se diga que o documento contém o "testamento vital", no qual se assinalam os cuidados de saúde que se deseja ou não receber em fase de incapacidade. 

Pergunto: as DAV são aqui identificadas com o dito "testamento vital"? 

Se é verdade que, no nosso país, a expressão DAV ainda não é muito conhecida, as pessoas mais informadas não podem partir desse desconhecimento para aumentarem a confusão terminológica.

Actualmente, uma DAV inclui várias possibilidades:  
  • uma declaração de valores e convicções que ajudem a interpretar como é que aquela pessoa concreta encara a questão da "qualidade de vida"; 
  • uma declaração de instruções quanto a tratamentos que deseja vir ou não a receber em determinadas situações clínicas;
  • a designação de um/a procurador/a de cuidados de saúde;
  • a possibilidade de se pronunciar sobre outras questões sobre o morrer e a morte, como a destinação do seu corpo, etc. 
De qualquer modo, no seu modelo americano originário, uma DAV era pelo menos constituída por uma declaração de instruções (living will, o dito "testamento vital") e/ou a designação de um/a procurador/a. 

Os próprios projectos de diploma apresentados anteriormente pela APB respeitavam esta visão clássica, e, de facto, de acordo com ela, não é no formulário de living will que se designa um/a procurador, mas noutro documento, integrando os dois uma DAV. 

Assim, no modelo agora apresentado pela APB, é a possibilidade de designar um/a procurador/a que é eliminada sem qualquer explicação, dando-se a entender ao cidadão comum que uma DAV se limita à indicação de tratamentos "extraordinários" que se deseja ou não receber em fase de incapacidade, e que é o médico a definir, não o cidadão.

Para além disto, as únicas situações clínicas apontadas são aquelas em que o doente já se encontra em situação muito próxima da morte, de modo que ser submetido ainda a meios de diagnóstico e tratamentos só serviria para "prolongar artificialmente o processo de morte". 

Nesse caso, determina-se que os meios extraordinários e desproporcionados de tratamento (linguagem típica da Igreja Católica, que aqui nunca inclui a alimentação e hidratação artificiais) sejam não iniciados ou suspensos, havendo apenas acompanhamento paliativo. 

A perplexidade deriva do facto de a pessoa estar aqui a dizer que recusa algo que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos já considera ser má prática médica, sob o nome de "distanásia". 

Portanto, o documento apresentado é para que o cidadão se dê ao trabalho de registar no notário que não quer que uma eventual equipa médica lhe aplique em fim de vida uma tortura que o código destes profissionais já condena. 

Que esta salvaguarda pudesse, à cautela, figurar numa declaração de instruções, entende-se. O que não se entende é fazer dela o único assunto que aborda. Esvazia-se assim o testamento vital de qualquer conteúdo pertinente.

Vinte anos depois da morte de Nancy Cruzan, que esteve em estado vegetativo persistente durante quase oito anos, obrigando os pais a várias acções judiciais esgotantes até obterem autorização para que fosse retirada a alimentação e hidratação forçadas, estamos confrontados com um modelo de DAV de uma época pré-Cruzan, que em nada ajudaria Nancy, os pais ou o sistema judicial.  

Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN  [Administração Regional de Saúde do Norte] (laura.laura@mail.telepac.pt) 


"Testamento vital: enfrentar os profetas da desgraça"
Por Rui Nunes

O debate em torno da legalização do testamento vital em Portugal evidencia o que de melhor e pior tem o povo português.

A Associação Portuguesa de Bioética defende desde 2006 a legalização das directivas antecipadas de vontade de que o testamento vital é o rosto mais visível. 

Legalizar esta prática implica um amplo debate social, esclarecendo ideias e conceitos para que a legislação a aprovar pela Assembleia da República seja o reflexo da vontade real dos cidadãos. 

Desde que a Associação Portuguesa de Bioética propôs o testamento vital a generalidade das ordens e associações profissionais, das religiões, ou de grupos de cidadãos mostraram-se favoráveis à sua legalização imediata. A título de exemplo, nenhum partido político com representação parlamentar se opõe, em princípio, ao testamento vital.

Deve ficar claro, porém, que a Associação Portuguesa de Bioética não se pretende substituir ao legislador. Nesse sentido apenas efectua propostas que possam ser úteis para o debate público e para o processo legislativo entretanto iniciado no Parlamento.

Curiosamente, ou talvez não, as críticas mais contundentes à proposta da Associação Portuguesa de Bioética surgem por parte de personalidades que já defenderam no passado o testamento vital. 

Sob a pretensa capa do conhecimento científico, estes "profetas da desgraça" utilizam todo o tipo de argumento para bloquear esta importante conquista civilizacional. Recorrem, por hábito, a uma velha estratégia: o problema não reside na questão em si mesma - legalizar o testamento vital -, mas no modo, na oportunidade, ou no local onde esta proposta é discutida.

Por exemplo, num artigo recente no jornal PÚBLICO [15/5/2010] Laura Santos alega que a proposta da Associação Portuguesa de Bioética de legalização do testamento vital é - pasme-se - um passo atrás no testamento vital. Pode haver discordância de ideias. Isso é legítimo numa democracia plural. O que já não é aceitável é que se façam comentários pejorativos e que se teçam críticas sem nenhuma conexão com a realidade.

A proposta de testamento vital da Associação Portuguesa de Bioética está de acordo com as versões mais modernas existentes no plano internacional e permite um amplo campo de manobra a quem o efectuar. 

Como é do conhecimento geral, o testamento vital surgiu há 35 anos atrás como ferramenta para evitar a obstinação terapêutica, fruto do excessivo pendor tecnológico da medicina. Não obstante esta concepção original de testamento vital, a evolução verificada na maioria dos países desenvolvidos permitiu que outro tipo de escolhas pudessem ser efectuadas. 

Quando na proposta da Associação Portuguesa de Bioética se deixa um espaço em branco para que qualquer escolha seja declarada (sobre os tratamentos que se deseja ou não receber em fase de incapacidade para decidir) está-se a alargar o campo de manobra não perdendo a ideia central de evitar a obstinação terapêutica.

Em síntese, o debate em torno da legalização do testamento vital em Portugal evidencia o que de melhor e pior tem o povo português. 

A sociedade, em geral, apoiou este movimento iniciado pela Associação Portuguesa de Bioética, demonstrando inequivocamente que não estamos condenados ao fracasso. Mas, como sempre, três ou quatro personalidades do nosso meio "científico" tentam a todo o custo evitar a modernização da nossa sociedade. Compete à sociedade, em uníssono, dizer não a estes novos "profetas da desgraça". 

Professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto, presidente da Associação Portuguesa de Bioética (www.sbem-fmup.org)

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