15 agosto, 2010

Harakiri? por Uri Avnery

Se Deus quiser, mesmo uma vassoura pode disparar - assim escrevi após a nomeação da comissão Turkel. Estava a citar um adágio judaico, na esperança de que, apesar de tudo, alguma coisa iria sair dali.

A comissão nasceu em pecado. Aqueles que a nomearam não estavam interessados em descobrir a verdade mas em impedir a criação de uma comissão internacional de investigação ou um Conselho de Inquérito Estatal. Os "termos de referência", que foram prescritos à Comissão foram extremamente estreitos. No princípio, a comissão não tinha poderes para obrigar  a comparecer testemunhas perante ela.

Em suma: uma comissão sem asas, um cabo de vassoura sem vassoura.

Eu esperava que os membros da comissão não iriam concordar em dançar ao compasso da música do governo. Ainda hoje é muito cedo para julgar se passaram este teste mas já pode ser dito: Eles quebraram as suas cadeias.

Depois do depoimento, esta semana, das três testemunhas centrais  - Binyamin Netanyahu, Ehud Barak e Gabi Ashkenazi - já se pode extrair a primeira conclusão: a comissão está a ignorar os termos de referência que lhe foram impostos. Os termos desapareceram. A comissão mal mencionou o assunto de que foi incumbida de explorar - o direito internacional - e em vez disso pegou em tudo o resto.

Isso não foi difícil, porque todas as três testemunhas violaram os termos de referência que eles próprios haviam moldado. 

Cada uma delas estava tão ansiosa por demonstrar como era honesta e sábia, que o tema oficial da investigação foi quase esquecido.

Assim, um fait accompli foi estabelecido: a Comissão não está mais restringida pelos termos de referência, mas está a lidar com todos os aspectos da falhada operação. (Os termos de referência podem, contudo, aparecer novamente quando chegar a hora de elaborar as suas conclusões).

Foi interessante observar como os três testemunhos foram recebidos pela media.

Quase toda a media caiu em cima das duas primeiras testemunhas e glorificou a terceira.

Netanyahu foi negligente ao ponto da frivolidade, colocando toda a responsabilidade sobre Barak e nem sequer controlou os factos. Afinal, ele estava fora [de Israel] no momento, então o que é que eles querem dele, foi Barak, que geriu o assunto sozinho.

Depois de a media o ter atacado ferozmente, Netanyahu rapidamente convocou uma conferência de imprensa improvisada e de forma imponente anunciou que assumia toda a responsabilidade.

Barak foi mais cuidadoso. Falou sem parar, afogando a comissão numa enxurrada de detalhes e também assumiu a responsabilidade, mas logo a passou, escadas abaixo, para os militares. O governo, afirmou, decide sobre a missão, cabe aos militares a responsabilidade pela sua implementação. Também foi duramente censurado pela media.

O Chefe do Estado-Maior apontou para os erros na execução da operação que foram cometidos pelos escalões inferiores, pela marinha e pelos serviços de informação das forças armadas, mas com impressionante magnanimidade chamou também a si a responsabilidade por isso.

O seu testemunho foi uma obra-prima. Surpreendentemente, verificou-se que ele era muito mais astuto do que os dois experientes políticos. Enquanto eles pareciam enguias escorregadias, preocupados apenas em se defenderem, ele apareceu como um entusiasta encantador, trapalhão e inocente, um simples soldado, honesto sincero, irradiando a integridade, de quem diz a verdade porque não sabe fazer outra coisa.

Ashkenazi é muito mais esperto do que parece. É verdade, o seu depoimento pode ter sido preparado pelos seus assessores, mas a esperteza de um líder também se expressa na capacidade de escolher conselheiros inteligentes.

Mais uma vez ficou provado que a media - e, aliás, todo o Estado - é controlada pelas forças armadas. As mesmas observações que foram recebidas com vaias quando proferidas por Netanyahu e Barak foram recebidos com atenção reverente, quando vieram do Chefe do Estado Maior. Um coro de admiradores elogiavam-no na TV, na rádio e nos jornais. Que pessoa honesta! Que soldado íntegro! Que comandante equilibrado e responsável! Se havia alguma diferença entre os porta-vozes uniformizados das forças armadas e os correspondentes militares em roupas civis, dificilmente se conseguiria distinguir.

O quadro geral que emergiu a partir dos três depoimentos principais é bastante claro: não existiram preparativos sérios para lidar com a flotilha, embora os planos para isso fossem conhecidos com muitos meses de antecedência. Tudo foi feito de forma amadorística, na famosa tradição de improvisação israelita, " confie em mim" e "vai ser OK".

Os anteriores navios de ajuda [humanitária] transportavam apenas pacifistas não-violentos, e todos assumiram que continuaria a ser assim. Ninguém prestou atenção ao facto de que os activistas turcos vinham imbuídos de uma ideologia bem diferente. Quem se importa, afinal, com o que os turcos estão a pensar. O Mossad glorioso nem sequer se deu ao trabalho de “plantar” um agente, a bordo do navio, entre as centenas de activistas.

O planeamento da operação foi à toa, sem informação suficiente, sem consideração suficiente das alternativas, sem levar em conta possíveis cenários de perigo. Afinal, não é preciso ser um profeta para prever que os activistas turcos, instilados com fervor religioso, se iriam opor energicamente à abordagem de um navio turco, em alto-mar, por soldados israelitas. Que surpresa!

Qual é a conclusão? O Chefe do Estado Maior divulgou-a sem hesitação: da próxima vez, as forças armadas irão usar snipers para abater, um por um, toda a gente no convés (ou, na linguagem dos analistas militares, “os atacantes"), enquanto os soldados descem em rapel dos helicópteros.

Uma vez que Netanyahu e Barak empurraram toda a responsabilidade para as forças armadas, e Ashkenazi apontou falhas no planeamento e execução, novamente surge uma questão prática: como podem os membros da comissão Turkel fazer um trabalho sério quando não estão autorizados a convocar pessoal militar?

Para evitar o problema, o Chefe do Estado Maior jogou-lhes dois ossos: o Advogado-Geral das forças armadas e Giora Eyland serão autorizados a prestar depoimento. (Eyland é o general aposentado que conduziu a investigação interna das forças armadas [sobre o ataque de 31 de Maio ao Mavi Marmara].) Mas isso está longe de ser suficiente. Para cumprir a sua missão, a comissão deve ouvir o depoimento do chefe da Marinha e da sua equipa. Em resposta à petição do Gush Shalom, o Supremo Tribunal já deixou entrever que se Turkel exigir a sua comparência, o tribunal vai obrigar o seu cumprimento.

Nenhuma das três testemunhas aflorou a questão principal: a existência do bloqueio de Gaza em si.

No fatídico encontro de "Os Sete" (os principais ministros), ficou claro que todos eles acreditam na necessidade do bloqueio, bem como na necessidade da repressão violenta de toda e qualquer tentativa para quebrá-lo.

O lado legal da questão é susceptível de provocar muito debate. Parece que a lei internacional não é clara sobre este aspecto, no que diz respeito tanto à imposição como à execução de um bloqueio. A lei não está estabelecida por escrito, num formato consistente. Permite muitas e diferentes interpretações.

A genuína questão, em qualquer caso, não é jurídica, mas moral e política: para que finalidade foi imposto o bloqueio?

Todas as testemunhas que compareceram até agora repetiram o mesmo e coincidente argumento: estamos em guerra com a Faixa de Gaza (independentemente do seu estatuto jurídico), o bloqueio é concebido para impedir a importação de material de guerra. Por isso, é legal e moral.

Mas isso é uma mentira completa.

É muito simples de controlar o movimento de carga por via marítima. Nesses casos, é habitual parar os navios em alto mar, inspeccionar a carga, confiscar material de guerra (se houver) e permitir-lhes continuar o seu caminho. A carga também pode ser inspeccionada no porto de partida.

Estes métodos não foram utilizados, porque toda a questão do material de guerra não é senão um pretexto.

O objectivo do bloqueio é justamente o oposto: para evitar a transferência de bens não-militares, os mesmos bens que também não foram autorizados por via de terrestre: muitos tipos de alimentos e medicamentos, matérias-primas para a indústria, materiais de construção, peças de reposição e muitos outros produtos, desde cadernos para crianças até equipamento para purificação da água.

O pouco que faz a vida suportável veio através dos túneis, a preços muito elevados, muito para além do alcance da maioria dos habitantes.

Desde o princípio, que o objectivo era perturbar a vida normal na Faixa de Gaza, para trazer a população à beira do desespero e induzi-los a se revoltarem e derrubarem o governo do Hamas. Este objectivo foi, obviamente, apoiado pelo governo dos E.U.A.,  pelos seus satélites no mundo árabe e, talvez, como alguns acreditam, pela Autoridade Palestiniana em Ramallah.

Netanyahu alegou no seu depoimento que "não havia nenhuma crise humanitária na Faixa de Gaza". Isso depende muito da interpretação do termo.

É verdade, as pessoas não morrem de fome ou de doença nas ruas. Não era o gueto de Varsóvia. Mas havia desnutrição generalizada entre as crianças, a miséria e a pobreza. O bloqueio causou desemprego generalizado, porque a produção de quase todos os sectores industrial e agrícola foi tornada impossível. Não houve importação de matérias-primas, nenhumas exportações, combustível insuficiente. Os produtos de Gaza não chegaram à Cisjordânia, Israel ou à Europa.

Tudo isso é agora  igualmente verdade, embora a frota [humanitária] tenha parcialmente concretizado a sua missão e assim tenha obrigado o governo israelita a autorizar a entrada de muitos tipos de bens que antes eram bloqueados.

O encerramento do porto de Gaza também tem contribuído para a crise humanitária. Dezassete anos atrás, Shimon Peres escreveu: "O porto de Gaza tem um potencial muito grande para crescer. As mercadorias e cargas que serão ali tratadas e que sairão pelos seus portões a caminho dos seus destinatários em Israel, Palestina, Jordânia, Arábia Saudita e mesmo no Iraque, vão explicar a revolução económica que acontecerá em toda a região.” Talvez Peres deva ser convocado para depor.

A palavra-chave em todos os depoimentos foi a "responsabilidade". Cada testemunha assumiu a responsabilidade e chutou-a tão longe quanto possível – tal e qual os jogadores de futebol que recebem a bola e passam-na para qualquer outro.

O que significa responsabilidade? Era uma vez, um líder japonês que assumiu a responsabilidade pelo insucesso, cravando uma faca na sua barriga - foi designado por Hara Kiri ("cortar a barriga"). Não existe um tal hábito bárbaro no Ocidente, mas existe a demissão de um líder responsável pelo insucesso.
Não aqui. Pelo menos, por agora não. Aqui, uma pessoa que "assume a responsabilidade" evoca louvor. Que coragem! Que nobreza! Ele assume a responsabilidade!

E isso é o fim disso.

In: Uri Avnery's Column

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