Na revista Notícias Sábado, um suplemento semanal do DN, existe uma secção de opinião “A espuma das coisas”, assinada por António Mega Ferreira.
Este sábado a sua crónica intitulava-se “Carta a um jovem republicano”.
Nela contextualiza o 5 de Outubro tendo como referência uma entrevista dada pelo Professor Magalhães Godinho, historiador, ao Jornal das Letras de 6 de Outubro.
Entendo que dados os créditos e com a devida vénia ao autor e ao Diário de Notícias me será permitido reproduzi-la na integra.
Caro André,
Uma noite destas, entre a perplexidade e a indignação, perguntaste-me como é possível que a imprensa tenha publicado nos últimos tempos tantos artigos em que a República, a Primeira, a que verdadeiramente conta, é posta de rastos. Isto no ano do centenário da sua implantação. Pois é, mas que queres? Quando os dois líderes dos partidos de direita nem sequer se dignaram estar presentes na cerimónia oficial, que outra coisa havia a esperar anão ser este desfile de baboseiras, ressentimentos, ódios recalcados e pós-salazarismos mal disfarçados? Não foi o líder da oposição que escolheu um monárquico confesso para coordenar o seu projecto de revisão da Constituição da República?
Em Portugal, meu caro André, tudo foi partidarizado até à irrisão. Temos uma justiça partidarizada, uma educação partidarizada e até, pasme-se, o Serviço Nacional de Saúde (uma evidência histórica e civilizacional) serve de arma de arremesso entre os partidos políticos. De modo que a República tornou-se, ela também, um campo de batalha que nem sequer tem o mérito de ser ideológico - é apenas grosseiramente politiqueiro. Para uma direita que é ainda em larga medida boçal, a reivindicação da República é uma coisa da esquerda, e, como tal, deve ser renegada como se do Anticristo se tratasse. Para uma esquerda que se diz novíssima, e que tem as suas tribunas académicas e jornalísticas, a República falhou porque não foi obreirista - num país onde não haveria, se tanto, mais de duzentos mil operários. Aqui tens como o ressentimento de uns e a frustração retrospectiva de outros se plasmou nessa corrente de opiniões demolidoras desse impulso decisivo para a modernidade que foi, com todas as suas contradições e insuficiências, a Primeira República.
E, no entanto, no meio de tanto disparate opinativo, há um texto enorme, de uma lucidez desarmante e de raciocínio rigoroso, que acabou por emergir da floresta de ressentimentos vários. Refiro-me à entrevista dada pelo historiador Vitorino Magalhães Godinho (VMG) ao JL de 6 de Outubro. O professor tem 92 anos e, como sabes, um currículo incomparável. E tem, sobretudo, um conhecimento dos factos que o toma voz autorizada, quando se trata de avaliar, à distância de quase cem anos, o que foi e o que significa a República implantada em 1910.
Desse longo e esclarecedor documento, interessa-me aqui, por causa das tuas perplexidades, a forma como o professor explica, ainda que indirectamente, a incompreensão generalizada de que sofre, nas colunas de opinião, a Primeira República. «Falta às pessoas uma certa preparação e uma certa sensibilidade para compreender que em 1910 não se punham os problemas que se colocam em 1940. A sociedade era diferente, totalmente mesmo. Nessa época, pensava-se sobretudo em termos políticos e cívicos (...) A parte social, que muitas vezes é criticada, não era muito comum na época, sobretudo num país como o nosso, em que setenta por cento da população era analfabeta e 65 porcento trabalhavam no campo. Por conseguinte, o problema social era diferente do de outros países europeus, até porque a terra não dava para alimentar a população»
V.M.G. valoriza, é claro, aquele que é o maior legado cultural da República: «a aposta na educação e na instrução superior». E, pelo caminho, desfaz alguns equívocos e mitos (mal) alimentados: o do improviso que teria sido o 5 de Outubro, o da impreparação do corpo expedicionário português ou o de que a motivação da participação de Portugal na Guerra se deveu a meros interesses de consolidação do regime republicano. Mas não hesita em considerar que a República nunca foi um movimento popular «porque Portugal não tinha grandes cidades, apenas vilas com uma burguesia média», que era «geralmente republicana e estava preparada para apoiar (a revolução)».
Mas a entrevista aborda tudo: a contra-informação monárquica, a política de resistência das classes privilegiadas, o sidonismo, as aparições de Fátima. E, em jeito de balanço: «A civilização moderna só floresce com a liberdade de pensar e de criar, recusa a clerocracia como a teocracia - supõe pois a laicidade nas instituições públicas e nas relações sociais,» Foi isso o projecto do 5 de Outubro.
Eu identifico-me com este programa, que é um valor para a vida. E tu?
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