28 janeiro, 2009

Do lado errado

Um texto datado de 24.01.2009 da autoria de Uri Avnery, do Gush Shalom (Bloco da Paz), uma organização israelita que se bate pela Paz na Palestina e em Israel, onde analisa o discurso de tomada de posse de Barack Obama.
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DE TODAS as belas frases que Barack Obama proferiu no seu discurso de tomada de posse, estas são as palavras que ficaram presas na minha memória:

"Estão do lado errado da história".

Obama referia-se aos regimes ditatoriais no mundo. Mas nós, também, devemos reflectir sobre estas palavras.

Nos últimos dias tenho ouvido inúmeras declarações de Ehud Barak, Tzipi Livni, Binyamin Netanyahu e Ehud Olmert. E de cada vez que as oiço, estas oito palavras voltam para me assombrar: "Estão do lado errado da história".

Obama estava a falar como um homem do século XXI. Os nossos líderes (israelitas) falam a linguagem do século XIX. Eles lembram-me os dinossauros que antes aterrorizavam a sua vizinhança sem que notassem que o seu tempo já tinha passado.

DURANTE a cerimónia, uma e outra vez, o mosaico multicolorido da família do novo presidente foi mencionado.

Todos os 43 presidentes anteriores eram brancos protestantes, excepto John Kennedy, que era um branco católico.

38, entre eles, foram descendentes de imigrantes das Ilhas Britânicas.

Dos outros cinco, três foram de ascendência holandesa (Theodor e Franklin D. Roosevelt, bem como Martin Van Buren) e dois de ascendência alemã (Herbert Hoover e Dwight Eisenhower).

O rosto da família Obama é muito diferente.

A família alargada inclui brancos e descendentes de escravos negros, africanos do Quénia, indonésios, chineses do Canadá, cristãos, muçulmanos e até mesmo um judeu (um convertido Afro-Americano).

Os dois primeiros nomes do presidente, Barack Hussein, são árabes.

Este é a face da nova nação americana - uma mistura de raças, religiões, países de origem e de cores de pele, uma sociedade aberta e diversificada, onde todos os seus membros são supostamente iguais e identificam-se com os "pais fundadores".

O americano Barack Hussein Obama, cujo pai nasceu num vilarejo do Quénia, pode falar com orgulho do "George Washington, o pai da nossa nação", da "Revolução Americana" (a guerra de independência contra os britânicos), e manter o exemplo dos "nossos antepassados", que incluem tanto os pioneiros brancos como os negros escravos que "sofreram o açoite do chicote".

Essa é a percepção de uma nação moderna, multi-cultural e multi-racial: uma pessoa pertence-lhe ao adquirir cidadania, e a partir desse momento, é o herdeiro de toda a sua história.

Israel é o produto do estreito nacionalismo do século XIX, um nacionalismo fechado e exclusivo, com base na raça e na origem étnica, no sangue e na terra.

Israel é um "Estado judeu", e um judeu é uma pessoa nascida judia ou convertida de acordo com a lei religiosa judaica (Halakha).

Tal como o Paquistão e a Arábia Saudita, Israel é um estado cuja dimensão espiritual é em grande medida condicionada pela religião, raça e origem étnica.

Quando Ehud Barak fala sobre o futuro, ele fala a linguagem de séculos passados, em termos de força bruta e ameaça brutal, com exércitos fornecendo a solução para todos os problemas.

Essa foi também a linguagem de George W. Bush, que na semana passada se escapou furtivamente de Washington, uma linguagem que já soa aos ouvidos ocidentais como um eco do passado distante.

As palavras do novo presidente ressoam no ar:

"O nosso poder por si só não pode proteger-nos, nem nos dá o direito de fazer o que nos apetecer."

As palavras-chave foram "humildade e moderação".

Os nossos líderes estão agora ostentando a sua participação na Guerra de Gaza, na qual desenfreada força militar foi desencadeada intencionalmente contra uma população civil, homens, mulheres e crianças, com o objectivo declarado de "criação de dissuasão".

Na era que se iniciou terça-feira passada, essas expressões só podem despertar horror.

ENTRE Israel e os Estados Unidos abriu-se uma fissura, esta semana, uma estreita fissura, quase invisível - mas ela pode abrir-se num abismo.

Os primeiros sinais são pequenos.

No seu discurso de tomada de posse, proclamou Obama que:

"Somos uma nação de cristãos e de muçulmanos, judeus e hindus - e de não-crentes."

Desde quando?

Desde quando é que os muçulmanos precederam os judeus?

O que aconteceu com o "Património judaico-cristão"? (Uma ideia completamente falsa para começar, já que o Judaísmo está muito mais próximo do Islamismo do que do Cristianismo. Por exemplo: nem o Judaísmo nem o Islamismo apoiam a separação entre religião e estado).

Na manhã seguinte, Obama telefonou a alguns líderes do Médio Oriente.

E decidiu ter um gesto bastante singular: fazendo a primeira chamada para Mahmoud Abbas e só depois telefonando a Olmert.

A media israelita não teve estômago para tanto.

O Haaretz, por exemplo, falsificou conscientemente a informação escrevendo - e não uma vez, mas duas vezes sobre a mesma questão - que Obama teria telefonado a "Olmert, Abbas, Mubarak e ao rei Abdallah" (por essa ordem).

Em vez do grupo de judeus americanos que haviam sido responsáveis pelo conflito israelo-palestiniano durante as administrações de Clinton e de Bush, Obama, no seu primeiro dia no cargo, nomeou um árabe-americano, George Mitchell, cuja mãe havia chegado à América vinda do Líbano com 18 anos, e que, órfão de seu pai irlandês, foi criado por uma família libanesa cristã-maronita.

Estas não são boas notícias para os dirigentes israelitas.

Nos últimos 42 anos, têm prosseguido uma política de expansão, ocupação e de colonização em estreita cooperação com Washington.

Têm confiado no ilimitado apoio americano, desde a oferta massiva de dinheiro e de armas, ao uso do veto no Conselho de Segurança. Este apoio foi essencial para sua política. Este apoio poderá agora ter atingindo o seu termo.
Vai acontecer, naturalmente, de forma gradual.

O lobby pró-Israel em Washington vai continuar a colocar o medo de Deus no Congresso. Um navio enorme como os Estados Unidos só pode mudar de rumo muito lentamente, numa curva suave. Mas a mudança começou já no primeiro dia da administração Obama.

Isso não poderia ter acontecido, se a própria América não tivesse mudado.

Não se trata apenas de uma mudança política. É uma mudança na visão do mundo, na mentalidade, nos valores.

Um certo mito americano, que é muito semelhante ao mito sionista, foi substituído por um outro mito americano. Não é por acaso que Obama dedica ao tema uma tão grande parte do seu discurso (no qual, por sinal, não houve uma única palavra sobre o extermínio dos nativos americanos).

A Guerra de Gaza, durante a qual dezenas de milhões de americanos viram a horrível carnificina na Faixa de Gaza (mesmo que uma rigorosa auto-censura, cortasse quase tudo excepto uma ínfima parte), acelerou o processo de afastamento.

Israel, a corajosa irmãzinha, o fiel aliado de Bush na "guerra ao terror", tornou-se no violento Israel, o monstro enlouquecido, que não tem qualquer compaixão pelas mulheres e crianças, os feridos e os doentes. E quando ventos destes estão soprando, o Lobby perde peso.

Os líderes de Israel não deram conta. Eles não sentiram, quando Obama os colocou num outro contexto, que "o terreno fugira debaixo deles." Eles pensam que este não é mais do que um problema político temporário que pode ser resolvido a contento com a ajuda do Lobby e dos membros servis no Congresso.

Os nossos líderes continuam intoxicados com a guerra e embriagados com a violência.

Refraseando a famosa expressão do general prussiano, Carl von Clausewitz: "A guerra é apenas a continuação de uma campanha eleitoral mas por outros meios." Competem, uns contra os outros, vangloriando-se e bazofiando pela sua parte dos "créditos".

Tzipi Livni, que não pode competir com os homens para a coroa de senhor da guerra, tenta supera-los na tenacidade, na belicosidade, e na dureza de coração.

O mais brutal é Ehud Barak.

Uma vez chamei-lhe "criminoso da paz", porque levou ao fracasso a conferência de Camp David, em 2000, e destruiu o campo da paz em Israel.

Agora, devo chamá-lo de "criminoso de guerra", pois que planificou a Guerra de Gaza sabendo que iria assassinar massivamente civis.

Aos seus próprios olhos e aos olhos de uma grande parte do público, esta é uma operação militar, que merece todos os elogios.

Os seus assessores também pensaram que esta operação iria trazer-lhe sucesso nas eleições.

O partido trabalhista, que tinha sido o maior partido no Knesset durante décadas, tinha encolhido nas sondagens para 12, até 9 lugares, num total de 120.

Com a ajuda da atrocidade de Gaza subiu agora para os 16, se tanto. Não é uma vitória retumbante e não há nenhuma garantia de que não se vá afundar novamente.

Qual foi o erro de Barak?

Muito simples: qualquer guerra ajuda a direita. A Guerra, por sua própria natureza, desperta na população as mais primitivas emoções - ódio e medo, medo e ódio.

Estas são as emoções que a Direita tem cavalgado por séculos.

Mesmo quando é a "Esquerda", que começa uma guerra, ainda é a direita que dela beneficia.

Num estado de guerra, a população prefere uma honesto-e-bondoso direitista que um impostor esquerdista.

Isso está acontecendo com Barak pela segunda vez.

Quando, em 2000, ele espalhou o mantra "Tenho virado cada pedra no caminho para a paz, / Tenho feito aos palestinos ofertas sem precedentes, / Eles rejeitaram tudo, / Não há ninguém com quem falar" -, conseguiu não só estilhaçar a esquerda, mas também preparar o caminho para a ascensão de Ariel Sharon nas eleições de 2001.

Agora, está preparando o caminho para Binyamin Netanyahu (esperando, claramente, tornar-se o seu ministro da Defesa).

E não só para ele.

O verdadeiro vencedor da guerra é um homem que não teve parte em nada dela: Avigdor Liberman.

O seu partido, que, em qualquer país normal seria chamado de fascista, tem vindo a subir nas sondagens. Por quê? Porque Liberman parece e soa como um Mussolini israelita, ele odeia os árabes desenfreadamente, um homem do mais brutal vigor. Comparado a ele, inclusive Netanyahu parece um “fraco”.

Uma grande parte da geração jovem, alimentada por anos de ocupação, mortandade e destruição, depois de duas guerras atrozes, considera-o um líder digno.
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ENQUANTO OS E.U.A. deram um gigantesco salto à esquerda, Israel está prestes a saltar ainda mais para a direita.

Quem viu os milhões agitando-se em Washington, no dia da tomada de posse. sabe que Obama não estava a falar apenas para si próprio. Ele expressava as aspirações do seu povo, o espírito da sua época (Zeitgeist).

Entre a mentalidade de Obama e a mentalidade de Liberman e de Netanyahu não há qualquer contacto. Entre Obama e Livni e Barak (Ehud) também se escancara um abismo.

A pós-eleição de Israel poderá encontrar-se em rota de colisão com o pós-eleitoral da América.

Onde estão os judeus americanos?

A esmagadora maioria deles votaram a favor de Obama. Ficaram entre o martelo e da bigorna - entre o seu governo e a sua natural simpatia por Israel.

É razoável supor, por isso, que irão exercer pressão sobre os "líderes" do judaísmo americano, que aliás nunca foram eleitos por ninguém, e sobre organizações como a AIPAC.(The American Israel Public Affairs Committee – America’s Pro-Israel Lobby).

O forte bordão, aonde os dirigentes israelitas estão habituados a encostar-se em momentos de angústia, poderá revelar-se não ter qualquer valor.

A Europa, também, não é intocável pelos novos ventos.

É verdade que, no final da guerra, vimos os líderes da Europa - Sarkozy, Merkel, Browne e Zapatero - sentados como crianças de escola, atrás de uma mesa, na sala de aula, a ouvir, respeitosamente, as mais abomináveis e arrogantes posições de Ehud Olmert, recitando seu texto, depois dele.

Pareciam aprovar as atrocidades da guerra, falando dos Qassams e esquecendo a ocupação, o bloqueio e os colonatos. Provavelmente não irão pendurar esta foto nas paredes do seu escritório.

Mas durante esta guerra multidões de europeus, vieram em torrentes para as ruas manifestando-se contra os horríveis acontecimentos. As mesmas multidões que saudaram Obama no dia da sua tomada de posse.

Este é o novo mundo. Talvez os nossos dirigentes já estejam sonhando com o slogan: "Pare o mundo, quero descer!" Mas não existe um outro mundo.

SIM, AGORA ESTAMOS no lado errado da história.

Felizmente, há também um outro Israel.

Não está na ribalta, e sua voz é ouvida apenas por aqueles que a querem escutar.

Este é um Israel são e racional, virado para um futuro, de progresso e de paz.

Nas próximas eleições, a sua voz vai ser fracamente ouvida, porque todos os velhos partidos estão firmemente assentes no mundo de ontem.

Mas o que aconteceu nos Estados Unidos terá uma profunda influência sobre o que acontecerá em Israel. A imensa maioria dos israelitas sabe que não poderão existir sem se manterem estreitos laços com os E.U.A.

Obama é agora o líder do mundo, e nós vivemos neste mundo.

Quando ele promete trabalhar "agressivamente" para a paz entre nós e os palestinos, é uma ordem de marcha para nós.

Queremos estar do lado certo da história. Isso vai levar meses ou anos, mas estou certo de que vamos chegar lá. O tempo de começar é agora.

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