06 julho, 2009

BANANAS, por Uri Avnery, ou como um exército de cidadãos se transforma numa máquina de opressão

NEM TODOS os dias, nem mesmo em cada década, o Supremo Tribunal Militar censura o Procurador-Geral. A última vez que isso aconteceu foi há 20 anos atrás, quando o Procurador-geral se recusou a produzir acusação contra um oficial que ordenara aos seus homens que quebrassem os braços e as pernas de um palestino que se encontrava amarrado. O polícia alegou que considerava ser este o seu dever, depois de o ministro da Defesa, Yitzhak Rabin, ter exortado a "quebrar os seus ossos".


Bem, esta semana aconteceu de novo. O Supremo Tribunal tomou uma decisão que foi equivalente a uma bofetada na cara do actual chefe do departamento jurídico do Exército, o Brigadeiro Avichai Mendelblit.

O incidente em questão ocorreu em Ni'alin, uma aldeia que foi roubada de uma grande parte das suas terras pela Barreira de Separação [o Muro]. Tal como os seus vizinhos em Bil'in, os moradores manifestam-se todas as semanas contra a Barreira. Geralmente, as reacções do exército em Ni’alin são ainda mais violentas do que em Bil'in. Quatro manifestantes já lá foram mortos.

Neste particular incidente, o tenente-coronel Omri Borberg deteve um manifestante palestino, que estava sentado no chão, algemou-o e vendou-lhe os olhos, e sugeriu a um dos seus soldados "anda cá, vamos dar-lhe uma borracha". Ele ordenou ao soldado categoricamente que disparasse uma bala de borracha.

Para quem não sabe: "balas de borracha" são balas de aço revestidas com borracha. A uma certa distância podem causar ferimentos dolorosos. A curta distância podem ser fatais. Oficialmente, os soldados estão autorizados a utilizá-las desde que guardem uma distância mínima de 40 metros.

Sem hesitar, o soldado atingiu o prisioneiro no pé, mas esta foi uma "ordem manifestamente ilegal", que um soldado do exército é obrigada por lei a desobedecer.

Segundo a clássica definição de juiz Binyamin Halevy no caso do massacre de Kafr Kassem, em 1957, a "bandeira negra da ilegalidade" está ondeando sobre tais ordens. O prisioneiro, Ashraf Abu-Rakhma, foi atingido e caiu no chão.

Veteranos das manifestações de Ni'alin e Bilin sabem que incidentes semelhantes acontecem o tempo todo. Mas o caso de Abu-Rakhma foi especial por um motivo: ele foi documentado por uma jovem mulher de uma varanda próxima à cena do crime com uma das câmeras fornecidas aos aldeões pela B'tselem, uma organização israelita de direitos humanos.

Assim, o Tenente-Coronel cometeu um pecado imperdoável: foi fotografado no acto. Geralmente, quando os activistas pela paz divulgam esses erros, o porta-voz do exército chega com o seu saco de mentiras e surge com alguma declaração mentirosa ("Atacou o soldado", "Tentou tirar-lhe a arma", "Resistiu à prisão"). Mas mesmo um talentoso porta-voz tem dificuldades em negar algo que é claramente visto no filme.

Quando o Procurador-Geral Militar decidiu processar o oficial e o soldado por "conduta imprópria", Abu-Rakhma e algumas organizações de direitos humanos israelitas apelaram ao Supremo Tribunal. Os juízes aconselharam o Procurador a mudar a acusação. Ele recusou, e por isso o assunto chegou novamente ao tribunal.

Esta semana, numa decisão incomum pela sua linguagem severa, os três juízes (incluindo um juiz do sexo feminino e um outro religioso), fixaram que a acusação de "conduta imprópria" era em si mesmo imprópria. Assim ordenaram a acusação de ambos, oficial e soldado, por um crime muito mais grave, a fim de tornar claro para todos os militares que maltratar um prisioneiro "é contrário ao espírito do estado e do exército."

Após esta bofetada no rosto, qualquer pessoa decente ter-se-ia demitido por vergonha. Mas não Mendelblit. O barbudo brigadeiro que usa kippa é um amigo pessoal do Chefe do Estado-Maior, Gabi Ashkenazi, e está esperando promoção a Major-General, a qualquer momento.

Recentemente, o Procurador-Geral recusou-se a acusar um oficial superior que afirmou em tribunal, enquanto testemunhava a favor de um subalterno, que é correcto maltratar palestinos fisicamente.

Ashkenazi deve muito ao seu Procurador-Geral, e por outras razões. Mendelblit tem feito um enorme esforço para encobrir crimes cometidos durante a recente guerra de Gaza, desde o plano de guerra de Ashkenazi aos crimes cometidos individualmente por soldados. Ninguém tem sido levado a julgamento, ninguém sequer foi seriamente investigado.

NO DIA em que a decisão do Supremo Tribunal relativa a Mendelblit foi publicada, outro brigadeiro também fez as manchetes. Curiosamente, o seu primeiro nome também é Avichai (não é um nome muito comum), também é barbudo e usa um kippa.

Num discurso perante mulheres-soldado religiosas, o Rabino-Chefe do exército, Brigadeiro Avichai Rontzky, expressou a opinião de que o serviço militar das mulheres é proibido pela religião judaica.

Uma vez que todas as jovens mulheres judias em Israel são obrigadas por lei a servir por dois anos, e as mulheres desempenham muitas tarefas essenciais no exército, esta é uma declaração sediciosa. Mas ninguém ficou realmente surpreso com este rabino.

Rontzky foi escolhido para este cargo pelo ex-Chefe do Estado-Maior, Dan Halutz. Ele sabia o que estava a fazer.

O rabino não nasceu numa família religiosa. Na verdade, ele era bastante "secular", membro de uma unidade de elite do exército, quando ele viu a luz e "renasceu". Tal como muitos outros deste tipo, ele não ficou a meio caminho, foi para extremo mais radical, tornando-se colono e criando uma Yeshiva (seminário religioso) num dos mais fanáticos colonatos.

Rontzky é um homem à medida de quem o nomeou. Recorde-se que, quando lhe perguntaram o que ele sentia quando deixava cair uma bomba de uma tonelada, numa área residencial, o General da Força Aérea Halutz respondeu: "um ligeiro solavanco na asa".

Numa discussão acerca de quando se deveria tratar um ferido palestino durante o Shabat, Rontzky escreveu que "a vida de um goy é certamente importante ... mas o Shabat é mais importante." Significado: um goy a morrer não deve ser tratado num Shabbat. Mais tarde retractou-se. (Em hebraico moderno coloquial, um goy é um não-judeu. O termo tem claramente conotações depreciativas.)

O exército israelita tem algo que é chamado de "Código Ético". É verdade, o pai espiritual do Código, o Professor Asa Kasher, não defendeu as atrocidades da operação "chumbo fundido", mas Rontzky fui muito mais longe: afirmou inequivocamente que "Quando há um choque entre... o Código Ético e os Halakha (lei religiosa), certamente o Halakha deve ser seguido. "

Numa publicação distribuída por ele, foi dito que "a Bíblia proíbe-nos que desistamos nem que seja de um milímetro de Eretz Israel". Por outras palavras, o Rabino-Chefe do exército, um brigadeiro das Forças de Defesa de Israel, afirma que a política oficial do governo israelita – desde a "separação" de Ariel Sharon até ao recente discurso de Binyamin Netanyahu, sobre um "Estado palestino desmilitarizado" - é um pecado mortal.

Mas o ponto mais alto foi alcançado numa brochura que o corpo de rabinos do exército distribuiu aos soldados durante a Guerra Gaza: "Exercer misericórdia para com um inimigo cruel significa ser cruel para com inocentes e honestos soldados. Na guerra como na guerra ".

Isto foi uma clara incitação à brutalidade. Pode ser visto como um convite para os actos que constituem crimes - os mesmos actos que o seu colega, o Procurador-Geral Militar, fez todo o possível por encobrir.

NENHUM DOS dois barbudo brigadeiros teriam permanecido no cargo por um único dia se não desfrutassem do pleno apoio do Chefe do Estado-Maior. O exército é uma instituição hierárquica, e a responsabilidade total por tudo o que acontece recaí clara e inteiramente sobre o Chefe.

Diferentemente dos seus antecessores, Gabi Ashkenazi não se mostra e não fala em público com frequência. Se tem ambições políticas, está a esconde-las bem. Mas, durante o seu mandato, o exército assumiu um determinado carácter, que é perfeitamente representado por estes dois oficiais.

Isso não começou, naturalmente, com Ashkenazi. Ele está a continuar - e talvez a intensificar - uma tendência que começou há muito tempo, e que vem mudando o exército israelita tornando-o irreconhecível.

O fundador do sionismo, Theodor Herzl, escreveu excelentemente no seu livro "Der Judenstaat", o documento fundador do movimento: "Saberemos como manter os nossos clérigos nos templos, como saberemos manter o nosso exército regular nas casernas... eles não serão autorizados a interferir nos assuntos do Estado. "

Agora está a acontecer exactamente o contrário: os rabinos introduziram-se no exército, os oficiais do exército provêm das sinagogas.

O núcleo duro dos colonos fanáticos, que é quase totalmente composto por pessoas religiosas (muitos dos quais são "judeus renascidos") decidiu há muito tempo obter o controlo do exército a partir de dentro. Numa campanha sistemática, que está em pleno andamento, elas penetram o corpo de oficiais a partir de baixo - a partir dos escalões mais baixos, para os do meio, até aos mais altos. Podemos ver o seu sucesso nas estatísticas: de ano para ano o número de oficiais usando kippa é crescente.

Quando o exército israelita foi criado, o corpo de oficiais estava cheio de membros dos kibutz. Não só os kibbutzniks eram considerados a elite da nova sociedade hebraica, que foi baseada nos valores da moralidade e da cultura, como eram os primeiros a voluntariar-se para cada tarefa nacional, mas também existiram razões "técnicas".

O núcleo do exército veio do estádio pré-Palmach. As companhias do Palmach constituíam um exército regular completamente mobilizado, uma parte da organização militar clandestina, o Haganah. Podiam existir e operar livremente apenas no kibbutzim, onde a sua identidade podia ser camuflada. Como resultado, quase todos os excelentes comandantes na guerra de 1948 foram provenientes do Palmach, membros dos kibbutz ou perto deles.

Eles tudo fizeram para imbuir nas novas Forças de Defesa com o espírito de um exército de cidadãos, pioneiro, moral e humanista, exactamente o contrário de um exército de ocupação.

É verdade, a realidade sempre foi diferente, mas o ideal era importante como um objectivo para que lutar. Como eu mostrei no meu livro de 1950, "O outro lado da moeda", a nossa "pureza das armas" sempre foi um mito. Mas a aspiração de ser um exército com valores humanistas era importante. Atrocidades foram escondidas ou negadas, porque eram consideradas vergonhosas e desonrosas para o nosso campo.

Nada se tem mantido de tudo isso, excepto palavras. 


Desde o início da ocupação em 1967, o carácter do exército mudou completamente. O exército, que foi fundado, a fim de proteger o estado de perigos externos tornou-se um exército de ocupação, cuja tarefa é a de oprimir outro povo, esmagar sua resistência, desapropriar terras, proteger ladrões de terras chamados colonos, bloquear passagens, humilhar seres humanos, todos os dias. Evidentemente, não é só o exército que mudou, mas também o Estado que dá ao exército as suas ordens, bem como a contínua lavagem cerebral.

Num tal exército, ocorre um processo de selecção natural. Pessoas diferentes, com elevados padrões morais, que detestam estas acções, saem mais cedo ou mais tarde. O seu lugar é tomado por outros tipos, pessoas com diferentes valores, ou sem valores de todo, "soldados profissionais" que "apenas seguem ordens".

Evidentemente, tem que se ter cuidado ao generalizar. No exército de hoje ainda existem algumas pessoas que acreditam que estão cumprindo uma missão, para quem o Código Ético é mais do que apenas uma compilação de frases hipócritas. Essas pessoas estão repugnadas com o que vêem. De vez em quando ouvimos os seus protestos e vemos as suas revelações. No entanto, não são elas que dão o tom, mas figuras como Rontzky e Mendelblit.

Isto deve-nos preocupar muito. Não podemos tratar o exército como se fosse um reino estrangeiro que não nos diz respeito. Não podemos dizer a nós próprios: "não queremos ter nada a ver com o exército de um Moshe Ya'alon, de um Shaul Mofaz, de um Dan Halutz ou de um Gabi Ashkenazi." Não podemos virar as costas ao problema. Devemos enfrentá-lo, porque ele é o nosso problema.

O estado precisa de um exército. Mesmo depois de alcançar a paz, vamos precisar de um exército forte e eficaz, a fim de proteger o estado até que a paz crie raízes profundas, e poderemos talvez então criar um organismo regional de acordo com as orientações da União Europeia.

O exército somos nós. O seu carácter tem impacto sobre toda a nossa vida, sobre a vida do nosso próprio Estado. Já foi dito: "Israel não é uma 'república das bananas. É uma república que desliza sobre bananas. " E que bananas!

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